sexta-feira, 31 de maio de 2013

João e o Faroeste do Planalto


Seguindo a esteira de filmes que circundam a obra de Renato Russo, icônico líder da banda Legião Urbana “Faroeste Caboclo” (do estreante René Sampaio, 2013) surge no vácuo deixado pelo recém-lançado “Somos Tão Jovens” (2013). Com base na enorme música homônima (aquela que você decorou de ponta a ponta), o roteiro de Victor Atherino e Marcos Bernstein se dedica a desenvolver a trajetória tortuosa do tal João, natural de Santo Cristo, Bahia. E acerta.

Chamando atenção já nos primeiros quadros pela Direção de Arte assinada por Tiago Marques Teixeira, o mesmo de “Ensaio Sobre a Cegueira” (2008), que explora a aridez do sertão baiano com cuidadosa atenção aos figurinos. Repare que as cores adotadas ali praticamente se confundem com a dos cenários, transmitindo bem a percepção desértica do lugar. Vários outros detalhes dão conta de ajustar a distância temporal do filme: observe a árvore de natal na casa do primo Pablo (Troncoso), os carpetes, as cortinas, os cabelos. A cadeira fabricada pelo carpinteiro João é vista de forma discreta num momento posterior da trama, já envernizada e fazendo parte da mobília.

Outro ponto positivo são as boas Transições de Cena que servem não meramente como elipses (o João criança joga um balde no poço que é puxado pelo mesmo João, já adulto), mas também como reforços charmosos à narrativa (o som de uma porta fechada com força é ouvido na cena seguinte, com João obstinado batendo com um maço de dinheiro sobre a mesa). Além do quase split-screen que mostra uma externa do apartamento onde é possível ver o casal protagonista transando por uma janela e na janela ao lado, o pai de Maria Lúcia (Marcos Paulo) lê um jornal completamente inconsciente do que acontece na própria casa.

Aliás, a Direção de Atores (antes, o casting) bem trabalhada intensifica o potencial dramático do filme. Os olhos de Fabrício Boliveira (o João) frequentemente dizem muito mais que as falas. Isis Valverde imprime muita sinceridade à Maria Lúcia, deixando um pouco mais distante a sombra de sua personagem Suelen. E Felipe Abib capricha na inconstância e insanidade de Jeremias, o Scarface do Planalto Central.
É preciso mencionar também a franqueza do texto, não só quando se trata de palavrões, mas ainda no uso de termos passiveis de serem interpretados como “pesados” em tempos de patrulha do politicamente correto. A discriminação racial sofrida pelo protagonista, por exemplo, aparece aqui Sem Covardia no Palavreado.

No entanto, como toda adaptação cinematográfica, é natural que fãs da obra original reclamem a Não-Similaridade entre um texto e outro. Aqui há algumas omissões que buscam simplificar a narrativa, tornando-a mais fluida e direta: os dois lados da moeda, o romance, o conflito, a resolução, o fim. Embora talvez a maior omissão tenha relação com a personalidade do protagonista.

O João de Renato Russo tem vocação para o crime e parece fazer parte de uma trajetória com destino definido que vai do inferno à absolvição. Mas para o Cinema com protagonista heroico, é necessário adotar uma personalidade que destaque virtudes inconfundíveis. Não há como fazer com que a plateia torça (ou sinta compaixão) por um sujeito com péssimas intenções, ruim de gênio. Sendo assim, o João do filme é uma boa alma que, atraída para circunstâncias que o fazem cometer crimes, torna-se um “fora-da-lei”. No Cinema, o herói nos redime ao encarnar o que há de melhor em nós. 

Seja como for, o tal João de Santo Cristo figura aqui num filme que bebeu a contento das fontes do Western clássico para nos entregar uma história imperfeita, mas empolgante - e destemida, exatamente como seu herói.