Parte 1: O filme
Através da obstinação da princesa Merida em fazer seu próprio destino, a trama de Valente (Brave, 2012) se esquiva a todo custo da tônica romântica e maniqueísta que circundou
Longe da imensa lista de responsabilidades previamente
impostas às mulheres, Merida parece orgulhosa dos cabelos ruivos que ela mantém
rigorosamente desalinhados. Os cachos de fogo vão de encontro à vivacidade
gasta nos passeios com o cavalo Angus ou na admirável habilidade com arco e
flecha. Mas em ‘Valente’ o casamento é ferramenta de diplomacia. Em nome da
honra de toda uma dinastia e a fim de assegurar a paz no reino, a mãe da
protagonista, Elinor, é uma metralhadora de regras que pretendem conduzir Merida
ao matrimônio. E é o conflito entre as duas que rege o tom da trama.
A despeito da aparente sisudez da rainha, a dinâmica
familiar é pura comédia. O ‘humor trapalhão’ adotado aqui conta como recurso a
favor tanto de desviar a expectativa de romance que vem pré-acionada numa
‘história de princesa’, como de aliviar a tensão crescente entre mãe e filha. E
a forma como os homens são retratados nessa produção assumidamente feminista,
não deixa de ser curiosa: sempre munidos de força bruta e dispostos a abrir mão
de qualquer conversa para resolver tudo na base dos socos e pontapés.
Assim, o rei Fergus é um guerreiro nato que derrotou ursos
ferozes, mas é incapaz coordenar o reino ou de por ordem à própria mesa -
também por conta dos adoráveis trigêmeos acrobatas. Os pretendentes de Merida,
assessorados por seus pais, também rendem boas risadas. São os clãs MacGuffin,
Dingwall e Macintosh - este último faz referência aos primeiros computadores
concebidos por Steve Jobs, um dos mais importantes acionistas da Pixar, a quem
o filme é dedicado.
‘Valente’ se torna interessante ainda ao remodelar outro aspecto caro às histórias de princesa: o
elemento fantasioso, geralmente concentrado na figura de um feiticeiro ou
bruxa. Recusando o usual maniqueísmo, aqui a bruxa funciona como uma espécie de
gênio da lâmpada ou curinga - e as chamas azuis que sinistramente convidam a
protagonista a adentrar na floresta escura de alguma forma remetem à mística
dos filmes do estúdio Ghibli.
Aí sobra espaço para o que realmente importa nessa história:
há uma cena extremamente representativa em que Merida, a fim de manusear melhor
seu arco, solta os cabelos presos pela mãe e rasga o belo vestido com a qual
fora apresentada a seus pretendentes. Não há simbolismo mais contundente que a
recusa desses adornos femininos, a negação do casamento arranjado, a obstinação
cega e o desejo de escrever a própria sorte.
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